sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Kali, Hel ou Morringan...

 A Morte é o Deus mais fácil de ser invocado. Desnecessário o uso de círculos e selos, você pode apenas chamá-la em voz alta, pensar sobre ela demoradamente sentado em um sofá, ou em pé, esperando por algo que não chegará. Lendo um livro, sonhando com desejos não ditos ou fazendo um sacrifício com seu sangue, ou de outro, e ela aparece. Ao contrário dos outros Deuses, ela também é fácil de ser agradada, pois sabe que, no fundo, todas as religiões e invenções humanas só existem por causa dela. O fato de você ter uma vida já a agrada, afinal, se você não tivesse vida, como ela iria tomar de você? Sem brigas de egos, sem preocupação, a Morte segue superior aos outros Deuses, consciente de que seu poder é infinito.

Quando a morte é invocada, ela pode matar muito mais que um corpo. A morte chega a outros níveis, age de outras maneiras. Existem outras mortes além daquela que apodrece o corpo, deixando o espírito (ou a alma para ser encomendada aos céus). Existe a morte da memória, quando nos esquecemos de algo que já foi importante, quando todos se esquecem de algo valioso. Essa morte vem para rituais, documentos, monumentos, obras de arte, religiões, línguas. Ela vem para pessoas, objetos cotidianos, livros. Vem escondida em discursos que reescrevem parte da memória de um povo, vem sutil em museus que rearranjam suas conquistas imperialistas. Mas ela também vem com a ausência das narrações pessoais, das histórias e memórias de alguém que já não mais existe, ou que existe, mas não lembra mais qual era seu nome e o nome de seus filhos outrora tão queridos. A morte da memória vem assim e é uma das formas da morte.

Assim como Odin, Zeus, Shiva ou outros grandes Deuses da mitologia, a morte tem muitos disfarces e muitos rostos. Você não engana a Morte, mas ela engana você. A morte também vem com a morte do desejo, quando já não se sente o fogo que ardia da vontade em realizar algo, quando não existe perspectiva de futuro, quando o prazer some. Essa morte aparece disfarçada, por vezes ignorada, e muitos pensam que a enganam, mas ela já se instalou e com sua foice cortou e matou o desejo humano. Ela é capaz de destruir o mais forte dos seres, destronar e empoderar tiranos, acabar com relacionamentos. Ela destrói e corrói tudo que vê pela frente. Essa face da morte extermina multidões e é a morte que não mata o corpo, mas destrói a alma, deixando um invólucro frágil seguindo em frente sem saber para onde. Talvez seja a face cruel dessa Deusa. Não digo a mais cruel, pois todas suas faces são cruéis, mas com certeza é a face mais torturante.

Não sejamos tão duros com essa Deusa. Existe a face dela da necessidade; é necessário que a morte venha para dar lugar ao novo algumas vezes, é necessário que ela mate para que possa renascer das cinzas a jovem fênix. A morte é forte por ser complexa, boa e ruim. A morte é a Deusa indestrutível.

A imperatriz versus a torre.

 

 

Eu choro hoje por ti e por mim. Primeiramente, por ti, meu futuro ex-amor.

Chamam-me fatalista; quanta injustiça! Apenas sei quando ficar e quando partir. Infelizmente, com vocês, homens, raramente ficar é uma opção. Quando, em raras ocasiões, existem razões para ficar, eu fico. Sou a primeira a me acomodar. Mas, quando não há razões, esforço-me para ser a primeira a partir.

E hoje, que noite triste, choro por ti, pois eu já sei que irei partir. Mas você não sabe. E como avisar? Como dizer o que já disse, mas deixando claro que irei embora mesmo estando aqui? Sim, estarei aqui, continuarei te beijando, acariciando e fingindo que acredito em todas as suas promessas, mas na verdade, cada dia estarei mais distante. Até chegar o dia em que será impossível disfarçar, e você perceberá. Nesse dia será tarde demais, é o dia da minha partida definitiva. Não temas a volta.

Você se pergunta, "tem algo que eu poderia fazer? Tem volta?" E eu direi que sim, embora saiba que não. Eu teria te dado o mundo, e você seria meu rei, te faria Deus entre os Deuses, te daria um pedaço de mim. Tudo contigo e tudo por ti. Esperei há tantos anos a chance de poder fazer isso por alguém, e, mais uma vez, minhas chances foram frustradas. Hoje eu sei que tudo acabou. Embora eu continue insistindo e permaneça mentindo para mim por algum tempo... Eu sei que acabou e por isso choro. Choro por tua burrice e pela minha derrota.

Sou incapaz de sentir o que senti por ti antes disso, perdoar, querer te dar tudo que quis, voltar a acreditar. Defeito meu e, eu sei, é um defeito grave. Em contrapartida, teu defeito é simplesmente ter errado, várias vezes; teu defeito é ser um homem como todos os outros e acreditar que, uma vez que eu estava em tuas mãos, jamais iria embora, mesmo que eu avisasse que estava indo. Teu defeito é não ser o homem que eu esperava.

E eu choro.

Sozinha, como sempre e mais uma vez, sozinha. Claro que tu dormes ao meu lado enquanto escrevo, claro que muitos dirão que estou exagerando, mas o que é um corpo apenas? Se eu durmo com um defunto, ele está fazendo companhia? Se assim for, posso ir ao cemitério, aqui tem vários, e me apaixonar por uma lápide fresca. Amanhã sem beijo, irás, sem mensagem e sem nada dizer. Talvez voltes, ou não. Quem poderá saber teus passos se nem tu sabes?

Deita, dorme, descansa, meu amor. Enquanto eu te esqueço em silêncio, enquanto eu vou embora. Fica assim cego, não perceba o que está à tua volta, não tomes atitude. Sê homem e ignora todos os sinais. Deita e dorme em paz hoje, enquanto eu choro por ti e por mim. E daqui a algum tempo, quando for muito tarde, quando eu já estiver tão longe que tua voz será apenas um eco, chama-me. Chama o mais que puderes e saiba que já fui embora e que então dormirás sozinho. Como já dormias há muito tempo.

E se puderes, perdoa-me. Por não ser capaz de ter sido clara. Eu tentei, juro. Mas tu não entendeste, e eu não quis continuar explicando. Se te consola, meu bem (é como te chamo), ao desistir de ti, um pedaço de mim morre, e sobram tão poucos pedaços nesse coração! Terei mais cuidado da próxima (quando será? Eu não sei) e quem sabe, acontece aquele momento raro e eu possa enfim me acomodar.