A Morte é o Deus mais fácil de ser invocado. Desnecessário o uso de círculos e selos, você pode apenas chamá-la em voz alta, pensar sobre ela demoradamente sentado em um sofá, ou em pé, esperando por algo que não chegará. Lendo um livro, sonhando com desejos não ditos ou fazendo um sacrifício com seu sangue, ou de outro, e ela aparece. Ao contrário dos outros Deuses, ela também é fácil de ser agradada, pois sabe que, no fundo, todas as religiões e invenções humanas só existem por causa dela. O fato de você ter uma vida já a agrada, afinal, se você não tivesse vida, como ela iria tomar de você? Sem brigas de egos, sem preocupação, a Morte segue superior aos outros Deuses, consciente de que seu poder é infinito.
Quando a morte é invocada,
ela pode matar muito mais que um corpo. A morte chega a outros níveis, age de
outras maneiras. Existem outras mortes além daquela que apodrece o corpo,
deixando o espírito (ou a alma para ser encomendada aos céus). Existe a morte
da memória, quando nos esquecemos de algo que já foi importante, quando todos
se esquecem de algo valioso. Essa morte vem para rituais, documentos,
monumentos, obras de arte, religiões, línguas. Ela vem para pessoas, objetos
cotidianos, livros. Vem escondida em discursos que reescrevem parte da memória
de um povo, vem sutil em museus que rearranjam suas conquistas imperialistas.
Mas ela também vem com a ausência das narrações pessoais, das histórias e
memórias de alguém que já não mais existe, ou que existe, mas não lembra mais
qual era seu nome e o nome de seus filhos outrora tão queridos. A morte da
memória vem assim e é uma das formas da morte.
Assim como Odin, Zeus,
Shiva ou outros grandes Deuses da mitologia, a morte tem muitos disfarces e
muitos rostos. Você não engana a Morte, mas ela engana você. A morte também vem
com a morte do desejo, quando já não se sente o fogo que ardia da vontade em
realizar algo, quando não existe perspectiva de futuro, quando o prazer some.
Essa morte aparece disfarçada, por vezes ignorada, e muitos pensam que a
enganam, mas ela já se instalou e com sua foice cortou e matou o desejo humano.
Ela é capaz de destruir o mais forte dos seres, destronar e empoderar tiranos,
acabar com relacionamentos. Ela destrói e corrói tudo que vê pela frente. Essa
face da morte extermina multidões e é a morte que não mata o corpo, mas destrói
a alma, deixando um invólucro frágil seguindo em frente sem saber para onde.
Talvez seja a face cruel dessa Deusa. Não digo a mais cruel, pois todas suas
faces são cruéis, mas com certeza é a face mais torturante.
Não sejamos tão duros com
essa Deusa. Existe a face dela da necessidade; é necessário que a morte venha
para dar lugar ao novo algumas vezes, é necessário que ela mate para que possa
renascer das cinzas a jovem fênix. A morte é forte por ser complexa, boa e
ruim. A morte é a Deusa indestrutível.