sexta-feira, 2 de setembro de 2016

O enigma da esfinge.

Existe uma lenda grega, bem conhecida por sinal, do encontro entre a Esfinge e Édipo. A lenda relata que os deuses Hera (em algumas versões Ares) decidem enviar a Esfinge de volta a sua casa na Etiópia, pois esta causara grandes problemas na Grécia. No caminho de volta a sua casa, a esfinge resolve parar em Tebas e se postando exatamente na entrada da cidade propõe um enigma: Que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem dois, e à tarde tem três?
Caso a pessoa resolvesse o enigma poderia passar por ela ilesa, caso contrário a Esfinge  o devorava.
Acontece que após muitos falharem em adivinhar tal enigma, Édipo consegue resolve-lo, fazendo com que a esfinge cometesse suicídio de vergonha por ter seu enigma resolvido.
Creio que o verdadeiro enigma da esfinge não é esse que ela propôs a tantos, inclusive a Édipo, o verdadeiro enigma é a existência desse ser e seu fenomenal suicídio, se jogando de um precipício para não conviver com a vergonha de ter seu enigma revelado. Ora, se tal enigma representava tanto para ela, seria essa uma forma de desvendar a Esfinge?
A esfinge tinha prazer em ser indecifrável, se divertia com isso, levando essa diversão a extremos, e sempre teve absoluta certeza que ninguém a desvendaria. Ledo engano. Imagine a dor de ter seu enigma desvendado e a vergonha de descobrirem o que você não quer que descubram. Pior: ter de conviver com isso.
Há uma aura de mistério e autoconfiança da esfinge de que ninguém é esperto o suficiente para a enganar ou resolver seus enigmas, e uma proteção dela em relação as pessoas. Ela não dará dicas ou te ajudará, ela não quer que você resolva seu mistério, ela deseja distância. A resolução do mistério poderia ser uma aproximação nada bem-vinda, marcaria quem resolveu o mistério como um igual.
Esfinges não gostam de ter seus segredos declarados ou suas intenções descobertas. Adoram brincar e querem a todo custo fazer com que você acredite que irá revelar o enigma, mas, a verdade, é que você será devorado por seu mistério.
Mas e os Édipos? Decifrar ou serem devorados por ela? Ao ser devorado se amarga a experiência de não ter mais controle da situação, e saber que perdeu o jogo e qualquer outra oportunidade de jogar novamente. Ao decifrar, a vitória é cantada e eternizada, mas perde-se qualquer oportunidade de jogar novamente, a jogadora principal já não existe mais para jogar. Mesmo que a esfinge não se jogasse de um precipício, ela já não seria mais a esfinge, pois tudo em que se baseava, seu enigma insolúvel, havia sido resolvido, perdera a identidade e o sentido de sua vida. Melhor desfecho foi ter achado o precipício mesmo. Mas na verdade ambos perderam: Édipo foi responsável pela morte de outro ser, mesmo que indiretamente.
Ou seja, ao pensar se quer decifrar ou ser devorado por uma esfinge, antes de mais nada reflita se está disposto a tanto para poder passar por Tebas.



segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Erro de percurso.

Talvez já fosse bem mais que duas horas da manhã.
Talvez não.
Aquele dia preferiu não olhar o relógio, companheiro a quem se submetia todos os dias fielmente e, sempre ao olhar que horas estava indo deitar calculava quantas horas iria dormir antes de acordar.
Mas aquele dia não poderia fazer isso pois sabia que não iria dormir tão cedo e olhar as horas passando seria apenas mais uma tortura que ela infringiria a si mesma.
O dilema que a fazia perder o sono era simples, banal, otário. Acontecia que ela estava começando a gostar de alguém e descobrirá, da pior forma possível, que seu novo amor já amava alguém. Sentiu uma dorzinha incômoda assim que ficou sabendo disso. Não sabia como lidar, nem o que fazer, ao fim chegou a conclusão que o melhor era deixar de o procurar, “esquecer não pode ser tão difícil” ela pensou. Porém, quem entende o ser humano? Ele a procurou, enviou uma mensagem, e, entre o sufoco de não saber o que fazer e a vontade de responder o moço, o seu sono sumiu. “Mas que ódio, se ele gosta dela por que me procurar? ” e ao pensar nisso reparou que seus quatro anos de estudo em psicologia haviam sido em vão. Não que ela não soubesse a resposta, só não queria assumir.
Acabou se decidindo as três horas da manhã e vinte e cinco minutos: iria responder a mensagem. Escreveu:
 Pare de ser estúpido e mande mensagem para a pessoa certa. Ambos sabemos que essa pessoa não sou eu.
Sentiu um alívio imenso no peito e dormiu.
Acordou no dia seguinte, não havia mensagem ou ligações do moço. Talvez ele tivesse entendido o recado e resolvido enviar mensagem para a pessoa que ele amava ou talvez tivesse encontrado outra pessoa para tentar a substituir, mas isso já não era mais um problema dela: esquecer não é nem um pouco difícil.




quinta-feira, 30 de junho de 2016

Gabriela.


Eu acho incrível o fato de como algumas pessoas marcam sua vida as vezes com atitudes triviais, banais.Com coisas até mesmo consideradas estúpidas ou monótonas, como por exemplo dobrar lençóis, mostrar a língua, revirar os olhos, embaralhar as cartas de um jogo de maneira diferente.
Eu tinha uma prima, que amo muito, e toda vez que vou dobrar lençóis eu lembro dela. Coisa boba, uma tarefa doméstica tão insignificante e chata, representa para mim uma lembrança, e pior, tal memória me faz reviver toda a convivência que tive e não tive com ela, em vários flashs estranhos e sem nexo, porém nem por isso menos saudosos.
O fato é o seguinte, tenho poucas lembranças dela porém as que tenho são bem marcantes, infelizmente para mim minha mãe era brigada com a família nessa época, então a convivência era bem rara. Mas eu tive o prazer de conviver, mesmo que pouco, com essa pessoa tão maravilhosa e, apesar dos poucos momentos juntas, os que existiram foram, digamos, pontuais, na minha memória infantil.
Eis a história do lençol: estava eu passando um período das minhas férias na casa de minha tia no interior de São Paulo, tinha já certo fascínio pelos meus primos mais velhos e lembro que seguia minha tia boa parte do dia (onde estava minha mãe? Não me recordo), uma dia minha tia e minha prima pegaram as roupas do varal e foram dobrar os lençóis. Achei incrível a praticidade e agilidade com que elas dobravam esses lençóis, havia algo de lindo, mágico naquilo, não demoraram dez minutos nessa tarefa . Mas a lembrança ficou. Modificada através dos anos em minha cabeça, acrescentando ou subtraindo algo dela, ela ainda vive, e justo em uma tarefa tão monótona me traz lembranças de uma pessoa que eu apenas posso ver na minha memória modificada. A pessoa pode ter morrido, mas ela vive na nossa memória, nas fotos, nas histórias, nas suas antigas apostilas da escola.
Coincidência ou não, ela morreu perto do meu aniversário, causando uma ligação eterna entre nós de maneira nefasta e, mais uma vez, pontual. Se a relação em vida não existiu, a em morte existe de maneira impossível. Temos 365 dias do ano, 364 que ela podia ter feito isso...Não é fácil esquecer. Como aquelas pessoas que morrem perto do natal, e para aquela família o natal não tem mais graça. Nós não queremos chorar ou lamentar, mas faz parte de nós. Acabamos por nos acostumar a ficar tristes na mesma época todo ano.
Chega a ser estranho ter apego por alguém com quem convive tão pouco, por anos após sua morte eu continuei a achando maravilhosa, acabei romantizando não pelo que lembrava dela e sim pelo que esquecia, pelo que não sabia, pelos sussurros e histórias que minha família contava sobre ela. Sempre a amei e admirei, nunca poderia dizer. O engraçado é que, talvez, se eu pudesse dizer, eu não a admiraria, talvez tivéssemos brigado, talvez eu não pudesse falar que a admirava. Nunca disse a minha tia que a acho maravilhosa e ela está lá, viva. Nós nunca dizemos, quase nunca demonstramos. E erramos, erramos e erramos ao fazer isso.
Um lençol não é um lençol. É a memória irrefreável da perda de alguém que amo, é a lembrança de uma beleza que se esvaiu da terra, é uma parte da história da minha vida. É o que faz com que pense que jamais esquecemos quem amamos.