terça-feira, 7 de novembro de 2023

Dualidade.

 

-Caindo de novo- ela disse com um meio sorriso no rosto.

-Eu sei, mas podemos... tentar de novo.

Ele riu descaradamente, apesar dos longos anos e de todos os sofrimentos que mantinham o sorriso de covinhas em seu rosto. Seu sorriso preenchia todo o vazio do espaço. Não era bonito como já foi no passado, mas como tudo na vida, essa fase havia passado. Ela era bonita, e, embora não tenha sido tão atraente antes, o tempo a lapidou como uma pedra, transformando todas as suas fases em algo interessante. Em seu auge, teve tantos amantes quanto Lord Byron, mas tudo tem um fim, e ela desistiu desse estilo de vida.

Lá estavam eles, após alguns anos, olhando um para o outro caídos no chão. Passaram por inúmeras distâncias, algumas pelo espaço, outras por causa dos corações despedaçados de ambos e de seus ex-companheiros. Ele acreditava que o sorriso dela poderia trazer paz para ele, que o toque dela o iluminava e que sua voz era suave como seda, fazendo-o se sentir bem. Ela o via como um bom amigo, um dos poucos que a fazia rir quando estava chorando, alguém que acreditava nela e a compreendia. Ele era igual a ela, mas ele não sabia. Ela desconfiava, mas como nunca tinha certeza de nada, nunca teve coragem de dizer.

Mais uma vez, eles se olharam, mas desta vez não sorriram. Sentiram uma grande vontade de ficar sérios. O mundo parecia ter parado, o vento havia cessado, deixando um calor opressivo no ar, como se uma chuva estivesse prestes a cair. Foi passageiro, e logo tudo voltou ao normal, como sempre acontece.

-Vamos- ela disse. -Temos que tentar de novo.

-Se você diz- ele respondeu.

-Bem, quem está fora é você. Você precisa pular esse muro.

-É...

Eles se levantaram e tentaram novamente. Ela deu um apoio para que ele pudesse subir no muro e, em seguida, saltou para dentro. Entraram na casa e pegaram a chave esquecida sobre a mesa de centro da sala. A casa tinha o cheiro das lembranças, do perfume dele, e ela sentiu isso. Depois de tanto esforço para entrar, eles mal se lembravam por que queriam tanto aquela chave. Nem precisaram dizer isso um ao outro, apenas se olharam com um olhar perdido. Riram e se jogaram no sofá, relembrando os velhos tempos. Passaram por tudo rapidamente, afirmando que não lamentavam o que tinha acontecido, mas sim o que não conseguiram fazer juntos. Havia promessas não cumpridas, histórias mal contadas e arrependimentos, mas tudo isso passa.

O telefone tocou em um canto escuro da sala, ele riu, relutante em atender o telefone e sair dali, mas o telefone não parava de tocar. Ele atendeu e, de repente, ficou sério, voltando ao seu antigo mau humor que ela havia visto há apenas um ano. Ela ficou assustada como nunca antes. Nunca o tinha visto chorar, ele simplesmente não chorava, jamais. Mas ele estava chorando naquele momento, e ela, que costumava consolar todos, não conseguia fazer nada além de acariciar sua cabeça.

Depois de alguns minutos, ela finalmente perguntou:

-O que aconteceu?

Ele chorava de forma intensa e descontrolada.

-Ela está no hospital, sofreu um acidente de carro.

Ela era a ex-namorada dele, conhecida como Laura.

-Vamos ao hospital- ela sugeriu, não porque realmente quisesse ir, mas porque sentiu a obrigação de sugerir.

-Não quero - ele respondeu violentamente.

-Por que não?

-Para que ir vê-la?

-Você está triste por causa dela. Você quer ir lá...

-Não quero. Estou chateado, fiquei com ela por seis anos!

-Está bem, então faça o que sempre faz, fique aí se lamentando.

Ela se levantou, ele a segurou, ela tentou se soltar, mas ele a puxou com mais força, e ambos acabaram caindo. No chão, lado a lado, depois de um tempo, eles se acalmaram.

-Não vou te deixar agora - ela gritou.

-Nunca? -Ele sussurrou, olhando para ela.

-Nunca deixei, nunca vou deixar.

-Eu te amo.

-É, eu também.

Ambos riram, aquele riso que seca as lágrimas e acorda a alma. Era como se a primavera tivesse chegado e apagado todas as mágoas. Novamente, só os dois ali. Até que o telefone tocar mais uma vez ou alguma obrigação os lembrar que cada um teria que ir para um lado diferente.

 

Baby says (republicado)

 

Já é tarde e daqui duas horas o metrô irá fechar, tem um silêncio aqui, a essa hora, que me deixa tranquilo e leva meus pensamentos longe, então as minhas costas ouço aquele barulho de salto tão familiar vindo em minha direção, e basta isso para nós sabermos que aquela viagem será longa.

De relance olho e vejo o que posso dela, um pouco da silhueta, parece que está com o vestido vermelho sangue, e na hora que entramos no trem vislumbro rapidamente seus olhos. Ela se senta bem na minha frente, eu sei que está cansada pois tira sua peruca ruiva ali mesmo, e ela só faz isso quando realmente está cansada e desiludida. Hoje o show não foi bom.

Sinto uma irreversível saudade da época em que nos conhecemos e em que achávamos que todo mundo se curvaria a nosso poder e vontade. Resta-nos saber se nosso poder e vontade era pouco ou se o mundo é mesmo cruel. Nesse momento entro em um devaneio sobre nosso imenso passado, vejo que estou com os olhos pregados nela, e ela em mim, e ela coça o queixo, enquanto eu volto as minhas memórias. Como não lembrar de tudo, se fui eu quem lhe deu o apelido que ela carrega até hoje?

Quando travamos amizade, jovens e irresponsáveis, andávamos de bar em bar, bebendo e dizendo: “Baby diz que morreria para te conhecer se você pagasse uma bebida para nós.” Minha Baby era tímida, era boba, e chorava muito no começo, principalmente quando alguém a ofendia, mas era muito bonita. Percebi que quanto menos chorava, menos me olhava nos olhos e cada vez ficava mais distante.

Quando a casa caiu e seu pai descobriu o que fazíamos nas madrugadas de São Paulo,e o nome que ela gostava de ser chamada, se ouviram gritos dizendo “Oswaldo! Oswaldo! Seu nome é Oswaldo!” Eu estava lá, mas era possível ouvir a briga no quarteirão inteiro, além dos barulhos de tapa, e, eu, sem entender o porque daquilo tudo, apenas pensava em proteger aquilo que tanto amava: minha Baby. Porque o pai dela não podia virar as costas e ir embora? Nos deixar em paz? Nem pedia a aceitação, eu só não queria a violência.

Lembro também que Baby começou a ficar obscura, queria ver o mundo de uma forma que eu discordava, quis vender o que para mim não devia ser vendido e me culpar pelo destino que tomava. Quando são distribuídas culpas, as brigas são sempre inevitáveis. A minha Baby se foi. E nós nunca teremos Paris, pois nunca fomos até lá. E também nunca voltaremos a conversar, pois não podemos ser humildes ou iguais na dor, prometemos isso a nós mesmos. Eu não entendo a dor dela, eu só consigo imaginar, talvez, se eu estivesse no lugar dela, teria feito igual, ou pior.

Quando retorno dos meus devaneios, Baby já tirou os brincos e noto que está muito branca, e, me parece esquisita sem seus cabelos e brincos. Chegando em casa, irá tirar os cílios e maquiagem, vestido e enchimentos, por último as meias e o salto, mas eu sei que nem nua ela virá outra coisa sem ser Baby. Irá virar uma dose de cachaça para ajudar a dormir, e esquecer o que tiver que esquecer daquele dia.

Tenho que andar mais meia hora olhando de viés para ela, pois, embora ambos saibamos de nossa presença nenhum a quer anunciar, e o silêncio que encaramos por toda nossa vida, acerca dos assuntos que a permearam, permanece.

Me pergunto se Baby ainda diz que está louca para conhecer alguém, como naqueles velhos tempos ou se tem vontade fazer o sangue de alguém subir. Ou se já encontrou alguém com pele tão branca e olhos tão negros como os dela e que os ame, como eu amei.

Mas quando, enfim, olhos em seus olhos para perguntar, aquela voz, que nunca irá existir em outro lugar sem ser no metro, anuncia a parada dela, ela sai, e a única coisa que Baby diz é adeus ao passar por mim.

Teus olhos e meu coração.

 

Ela tinha olhos cor de mel, impossível de esquecer. A primeira vez que a vi, foi na praia. Ela estava parada, olhando para o mar, seu vestido era azul celeste e feito de um tecido muito leve, quase transparente. Era um final de tarde e ventava bastante naquele dia. Eu gostava de sentar na areia e ficar desenhando, e foi nesse dia que a notei perto de mim. Ela também me viu. Em um momento, virou-se para trás e me olhou com aqueles olhos cor de mel brilhantes e sorriu. Pensei que ela iria me cumprimentar, mas simplesmente foi embora, caminhando pela praia.

Dias depois, descobri que ela morava no mesmo prédio em que eu estava hospedado, na verdade, era minha vizinha. Tantas coincidências estavam acontecendo, e sempre acreditei que nada era por acaso. Era um sinal de que algo iria acontecer entre nós, pelo menos eu tinha certeza disso, mas estava errado, pelo menos em parte.

Na quarta vez que a vi parada, ela estava na parte de baixo do prédio, fumando. Já a tinha visto entrando no apartamento com sacolas de supermercado, na praia novamente parada e saindo do prédio. A última vez foi enquanto eu estava na sacada do meu apartamento. Nenhuma dessas vezes consegui me aproximar dela, pois tudo acontecia muito rapidamente. Ela parecia ser uma daquelas pessoas ocupadas que tinham dois empregos e cuidavam de casa, parecia ser independente e resolvida. No entanto, em outras ocasiões, especialmente quando a via na praia, parecia à beira das lágrimas e triste. Era uma tristeza profunda, não temporária, mas aquela que vinha de dentro de seus olhos. Era a tristeza das pessoas que foram decepcionadas pela vida muitas vezes, dos depressivos, das pessoas que nunca foram amadas, das mães que perderam seus filhos. Era uma tristeza palpável, profunda o suficiente para tocar.

Eu me interessei por ela por causa de todas essas questões, porque ela parecia indecifrável e, ao mesmo tempo, fácil de entender. Então, decidi falar com ela. Conversamos, ela era simpática e tinha um sorriso lindo. Eu contei que estava passando alguns meses no apartamento que, na verdade, pertencia ao meu irmão, e ela me disse que estava morando no prédio há apenas alguns meses. Tinha se mudado recentemente com o marido. Foi um choque, pois nunca a tinha visto com ninguém, nem ouvido vozes em seu apartamento. Ela não parecia casada. Ela percebeu minha surpresa e explicou:

-Ele trabalha muito, então nos vemos pouco.

 Ela gostava dessa independência e não era do tipo grudento ou romântico. Estavam juntos há quatorze anos, mas não tinham filhos, pois ela não quis. No final da conversa, ela disse que precisava subir para organizar algumas coisas antes de ir para a academia e se foi. Eu a olhei nos olhos durante toda a conversa, pelo menos tentei, porque em alguns momentos meus olhos se desviavam enquanto ela falava.

Eu fazia questão de conversar com ela sempre que nos encontrávamos, e com o tempo, ela também parecia gostar da minha companhia. Comecei a ir até o apartamento dela à tarde para tomar café e ouvir música. Às vezes, íamos juntos à praia, e eu desenhava enquanto ela observava as ondas, perdida em seus pensamentos. Era uma amizade, embora eu quisesse mais, sabia que estava errado. Em três meses, vi o marido dela apenas uma vez. Em um dia em que estava na frente do apartamento dela, ele chegou e nos cumprimentou, explicando que eu era o novo vizinho, e então entrou. Eu vi a tristeza em seus olhos naquele momento, foi rápido, mas intenso. Eu teria abraçado, beijado e feito promessas de amor ali mesmo, mas não era possível. Aflorou em mim um desejo ardente, principalmente agora que sabia da infelicidade dela em um casamento que aparentemente estava gasto e carente de amor. Parecia que não era errado desejar, beijar. O marido dela não era mais do que um acessório em sua casa, como uma mesa ou um vaso. Algo sem importância para mim e, talvez, para ela.

Eu comecei a deixar transparecer meu desejo, e ela permitia, até certo ponto. Eu tinha que ser sutil. Infelizmente, meu tempo ali estava chegando ao fim, e pensei em tentar estender meu contrato de trabalho, mas isso prejudicaria meus futuros empregos na cidade onde eu oficialmente morava. Chegou o dia em que eu precisava contar a ela sobre minha partida. Iria embora em uma semana e precisava avisar. Estávamos tomando café na casa dela, e o marido estava no escritório trabalhando em um projeto. Eu disse que iria embora, mas antes, queria dizer algumas coisas. Ela pegou minha mão e colocou-a sobre seu peito, pedindo para que eu não dissesse nada, fazendo um sinal de silêncio com a mão sobre os lábios. Ela me disse:

-Meu coração bate forte perto de você.

            Ficamos em silêncio, nos olhando, e lágrimas escorreram de seus olhos. Ela se levantou em silêncio, enxugou as lágrimas e me abraçou. Foi tudo o que tive, um abraço forte. Ela me pediu para me despedir antes de viajar.

Ainda a encontrei mais uma vez, e fomos à praia. No dia em que parti, bati na porta de seu apartamento, mas ninguém atendeu. Pelo horário, ela poderia realmente não estar em casa, mas também poderia estar lá e não querer me ver. Ela já tinha dito meses atrás que não era boa com despedidas. Conversamos algumas vezes por mensagem, mas ela era péssima em responder.

Ao chegar à minha cidade, pintei um quadro com os olhos dela, o quadro mais caro que já fiz. Não quero vendê-lo, é tudo o que tenho. Embora não sejam os olhos reais dela, são apenas minha impressão, o que eu vi, o que eu lembro. Imagino se ela ainda está casada e vai à praia para olhar as ondas, perdida em seus pensamentos. Se em sua imaginação, ela tem alguém ao seu lado que existe de verdade, não apenas um fantasma, uma sombra. Começo a pensar em seus olhos e como, apesar de serem lindos, eles eram cegos. Fico triste por mim, por ela, pelos olhos e por tudo o que nunca aconteceu, exceto em minha imaginação.

 

Ruínas

 

Ela fechou os olhos, enquanto observava tudo acontecer. Não sabia o que dizer ou para onde ir. Parecia, naquele momento, que ela estava prestes a derreter, assim como tudo ao seu redor; tudo estava desmoronando lentamente.

A última frase dita ainda ecoava em sua boca: "Espere, ninguém te ama como eu te amo!" E o som da porta batendo também ecoava em seus ouvidos, uma batida seca e sem emoção, assim como o relacionamento deles: sem graça, assim como sua própria necessidade por aquele relacionamento.

Tudo estava amargo, tudo estava ruim, tudo desmoronava. Ela o procurou (tudo desmoronava), mas não o encontrou em casa (tudo desmoronava). Ela procurou todas as pessoas que conhecia, mas ninguém sabia (tudo desmoronando), ele finalmente a havia abandonado (tudo desmoronou). Meses depois, sua mente ainda estava turbulenta; ela se sentia inútil, e tudo parecia inútil para ela.

Finalmente, após vários dias de espera, uma noite, ela ouviu alguém bater à porta e correu para atender: era ele! Ela queria abraçá-lo, beijá-lo, tocá-lo, mas não podia. Satisfez-se apenas em olhá-lo com olhos vazios e cheios de lágrimas. Ele permaneceu parado na soleira da porta, esperando. Ela disse: "Minha casa é sua casa, podem entrar."

Ele entrou timidamente e sentou-se. Disse: "Não deu certo, você sabe?"

Ela não sabia, mas não disse nada, apenas esperou. Ele colocou as mãos no rosto e continuou: "É estranho."

Ela respondeu automaticamente: "Não vá." Sentiu-se culpada depois e abaixou a cabeça. Um silêncio se instalou. Ele riu, foi ao quarto, pegou uma blusa e estava saindo.

"Espere", ela gritou. Ele voltou e ficou perto dela. Se olharam, ele foi até a mesa e deixou a blusa lá. Voltou perto dela, a abraçou e fez o que sabia fazer melhor: pegou em sua mão e a guiou, como se nada tivesse acontecido. Até aparecer a próxima garota, a próxima briga, a próxima oportunidade.

Ela sabia que um dia ele desapareceria e não voltaria, mas aceitava o risco de amar nas ruínas de um relacionamento, tornando-se aos poucos uma ruína também.