sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Kali, Hel ou Morringan...

 A Morte é o Deus mais fácil de ser invocado. Desnecessário o uso de círculos e selos, você pode apenas chamá-la em voz alta, pensar sobre ela demoradamente sentado em um sofá, ou em pé, esperando por algo que não chegará. Lendo um livro, sonhando com desejos não ditos ou fazendo um sacrifício com seu sangue, ou de outro, e ela aparece. Ao contrário dos outros Deuses, ela também é fácil de ser agradada, pois sabe que, no fundo, todas as religiões e invenções humanas só existem por causa dela. O fato de você ter uma vida já a agrada, afinal, se você não tivesse vida, como ela iria tomar de você? Sem brigas de egos, sem preocupação, a Morte segue superior aos outros Deuses, consciente de que seu poder é infinito.

Quando a morte é invocada, ela pode matar muito mais que um corpo. A morte chega a outros níveis, age de outras maneiras. Existem outras mortes além daquela que apodrece o corpo, deixando o espírito (ou a alma para ser encomendada aos céus). Existe a morte da memória, quando nos esquecemos de algo que já foi importante, quando todos se esquecem de algo valioso. Essa morte vem para rituais, documentos, monumentos, obras de arte, religiões, línguas. Ela vem para pessoas, objetos cotidianos, livros. Vem escondida em discursos que reescrevem parte da memória de um povo, vem sutil em museus que rearranjam suas conquistas imperialistas. Mas ela também vem com a ausência das narrações pessoais, das histórias e memórias de alguém que já não mais existe, ou que existe, mas não lembra mais qual era seu nome e o nome de seus filhos outrora tão queridos. A morte da memória vem assim e é uma das formas da morte.

Assim como Odin, Zeus, Shiva ou outros grandes Deuses da mitologia, a morte tem muitos disfarces e muitos rostos. Você não engana a Morte, mas ela engana você. A morte também vem com a morte do desejo, quando já não se sente o fogo que ardia da vontade em realizar algo, quando não existe perspectiva de futuro, quando o prazer some. Essa morte aparece disfarçada, por vezes ignorada, e muitos pensam que a enganam, mas ela já se instalou e com sua foice cortou e matou o desejo humano. Ela é capaz de destruir o mais forte dos seres, destronar e empoderar tiranos, acabar com relacionamentos. Ela destrói e corrói tudo que vê pela frente. Essa face da morte extermina multidões e é a morte que não mata o corpo, mas destrói a alma, deixando um invólucro frágil seguindo em frente sem saber para onde. Talvez seja a face cruel dessa Deusa. Não digo a mais cruel, pois todas suas faces são cruéis, mas com certeza é a face mais torturante.

Não sejamos tão duros com essa Deusa. Existe a face dela da necessidade; é necessário que a morte venha para dar lugar ao novo algumas vezes, é necessário que ela mate para que possa renascer das cinzas a jovem fênix. A morte é forte por ser complexa, boa e ruim. A morte é a Deusa indestrutível.

A imperatriz versus a torre.

 

 

Eu choro hoje por ti e por mim. Primeiramente, por ti, meu futuro ex-amor.

Chamam-me fatalista; quanta injustiça! Apenas sei quando ficar e quando partir. Infelizmente, com vocês, homens, raramente ficar é uma opção. Quando, em raras ocasiões, existem razões para ficar, eu fico. Sou a primeira a me acomodar. Mas, quando não há razões, esforço-me para ser a primeira a partir.

E hoje, que noite triste, choro por ti, pois eu já sei que irei partir. Mas você não sabe. E como avisar? Como dizer o que já disse, mas deixando claro que irei embora mesmo estando aqui? Sim, estarei aqui, continuarei te beijando, acariciando e fingindo que acredito em todas as suas promessas, mas na verdade, cada dia estarei mais distante. Até chegar o dia em que será impossível disfarçar, e você perceberá. Nesse dia será tarde demais, é o dia da minha partida definitiva. Não temas a volta.

Você se pergunta, "tem algo que eu poderia fazer? Tem volta?" E eu direi que sim, embora saiba que não. Eu teria te dado o mundo, e você seria meu rei, te faria Deus entre os Deuses, te daria um pedaço de mim. Tudo contigo e tudo por ti. Esperei há tantos anos a chance de poder fazer isso por alguém, e, mais uma vez, minhas chances foram frustradas. Hoje eu sei que tudo acabou. Embora eu continue insistindo e permaneça mentindo para mim por algum tempo... Eu sei que acabou e por isso choro. Choro por tua burrice e pela minha derrota.

Sou incapaz de sentir o que senti por ti antes disso, perdoar, querer te dar tudo que quis, voltar a acreditar. Defeito meu e, eu sei, é um defeito grave. Em contrapartida, teu defeito é simplesmente ter errado, várias vezes; teu defeito é ser um homem como todos os outros e acreditar que, uma vez que eu estava em tuas mãos, jamais iria embora, mesmo que eu avisasse que estava indo. Teu defeito é não ser o homem que eu esperava.

E eu choro.

Sozinha, como sempre e mais uma vez, sozinha. Claro que tu dormes ao meu lado enquanto escrevo, claro que muitos dirão que estou exagerando, mas o que é um corpo apenas? Se eu durmo com um defunto, ele está fazendo companhia? Se assim for, posso ir ao cemitério, aqui tem vários, e me apaixonar por uma lápide fresca. Amanhã sem beijo, irás, sem mensagem e sem nada dizer. Talvez voltes, ou não. Quem poderá saber teus passos se nem tu sabes?

Deita, dorme, descansa, meu amor. Enquanto eu te esqueço em silêncio, enquanto eu vou embora. Fica assim cego, não perceba o que está à tua volta, não tomes atitude. Sê homem e ignora todos os sinais. Deita e dorme em paz hoje, enquanto eu choro por ti e por mim. E daqui a algum tempo, quando for muito tarde, quando eu já estiver tão longe que tua voz será apenas um eco, chama-me. Chama o mais que puderes e saiba que já fui embora e que então dormirás sozinho. Como já dormias há muito tempo.

E se puderes, perdoa-me. Por não ser capaz de ter sido clara. Eu tentei, juro. Mas tu não entendeste, e eu não quis continuar explicando. Se te consola, meu bem (é como te chamo), ao desistir de ti, um pedaço de mim morre, e sobram tão poucos pedaços nesse coração! Terei mais cuidado da próxima (quando será? Eu não sei) e quem sabe, acontece aquele momento raro e eu possa enfim me acomodar.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

Dualidade.

 

-Caindo de novo- ela disse com um meio sorriso no rosto.

-Eu sei, mas podemos... tentar de novo.

Ele riu descaradamente, apesar dos longos anos e de todos os sofrimentos que mantinham o sorriso de covinhas em seu rosto. Seu sorriso preenchia todo o vazio do espaço. Não era bonito como já foi no passado, mas como tudo na vida, essa fase havia passado. Ela era bonita, e, embora não tenha sido tão atraente antes, o tempo a lapidou como uma pedra, transformando todas as suas fases em algo interessante. Em seu auge, teve tantos amantes quanto Lord Byron, mas tudo tem um fim, e ela desistiu desse estilo de vida.

Lá estavam eles, após alguns anos, olhando um para o outro caídos no chão. Passaram por inúmeras distâncias, algumas pelo espaço, outras por causa dos corações despedaçados de ambos e de seus ex-companheiros. Ele acreditava que o sorriso dela poderia trazer paz para ele, que o toque dela o iluminava e que sua voz era suave como seda, fazendo-o se sentir bem. Ela o via como um bom amigo, um dos poucos que a fazia rir quando estava chorando, alguém que acreditava nela e a compreendia. Ele era igual a ela, mas ele não sabia. Ela desconfiava, mas como nunca tinha certeza de nada, nunca teve coragem de dizer.

Mais uma vez, eles se olharam, mas desta vez não sorriram. Sentiram uma grande vontade de ficar sérios. O mundo parecia ter parado, o vento havia cessado, deixando um calor opressivo no ar, como se uma chuva estivesse prestes a cair. Foi passageiro, e logo tudo voltou ao normal, como sempre acontece.

-Vamos- ela disse. -Temos que tentar de novo.

-Se você diz- ele respondeu.

-Bem, quem está fora é você. Você precisa pular esse muro.

-É...

Eles se levantaram e tentaram novamente. Ela deu um apoio para que ele pudesse subir no muro e, em seguida, saltou para dentro. Entraram na casa e pegaram a chave esquecida sobre a mesa de centro da sala. A casa tinha o cheiro das lembranças, do perfume dele, e ela sentiu isso. Depois de tanto esforço para entrar, eles mal se lembravam por que queriam tanto aquela chave. Nem precisaram dizer isso um ao outro, apenas se olharam com um olhar perdido. Riram e se jogaram no sofá, relembrando os velhos tempos. Passaram por tudo rapidamente, afirmando que não lamentavam o que tinha acontecido, mas sim o que não conseguiram fazer juntos. Havia promessas não cumpridas, histórias mal contadas e arrependimentos, mas tudo isso passa.

O telefone tocou em um canto escuro da sala, ele riu, relutante em atender o telefone e sair dali, mas o telefone não parava de tocar. Ele atendeu e, de repente, ficou sério, voltando ao seu antigo mau humor que ela havia visto há apenas um ano. Ela ficou assustada como nunca antes. Nunca o tinha visto chorar, ele simplesmente não chorava, jamais. Mas ele estava chorando naquele momento, e ela, que costumava consolar todos, não conseguia fazer nada além de acariciar sua cabeça.

Depois de alguns minutos, ela finalmente perguntou:

-O que aconteceu?

Ele chorava de forma intensa e descontrolada.

-Ela está no hospital, sofreu um acidente de carro.

Ela era a ex-namorada dele, conhecida como Laura.

-Vamos ao hospital- ela sugeriu, não porque realmente quisesse ir, mas porque sentiu a obrigação de sugerir.

-Não quero - ele respondeu violentamente.

-Por que não?

-Para que ir vê-la?

-Você está triste por causa dela. Você quer ir lá...

-Não quero. Estou chateado, fiquei com ela por seis anos!

-Está bem, então faça o que sempre faz, fique aí se lamentando.

Ela se levantou, ele a segurou, ela tentou se soltar, mas ele a puxou com mais força, e ambos acabaram caindo. No chão, lado a lado, depois de um tempo, eles se acalmaram.

-Não vou te deixar agora - ela gritou.

-Nunca? -Ele sussurrou, olhando para ela.

-Nunca deixei, nunca vou deixar.

-Eu te amo.

-É, eu também.

Ambos riram, aquele riso que seca as lágrimas e acorda a alma. Era como se a primavera tivesse chegado e apagado todas as mágoas. Novamente, só os dois ali. Até que o telefone tocar mais uma vez ou alguma obrigação os lembrar que cada um teria que ir para um lado diferente.

 

Baby says (republicado)

 

Já é tarde e daqui duas horas o metrô irá fechar, tem um silêncio aqui, a essa hora, que me deixa tranquilo e leva meus pensamentos longe, então as minhas costas ouço aquele barulho de salto tão familiar vindo em minha direção, e basta isso para nós sabermos que aquela viagem será longa.

De relance olho e vejo o que posso dela, um pouco da silhueta, parece que está com o vestido vermelho sangue, e na hora que entramos no trem vislumbro rapidamente seus olhos. Ela se senta bem na minha frente, eu sei que está cansada pois tira sua peruca ruiva ali mesmo, e ela só faz isso quando realmente está cansada e desiludida. Hoje o show não foi bom.

Sinto uma irreversível saudade da época em que nos conhecemos e em que achávamos que todo mundo se curvaria a nosso poder e vontade. Resta-nos saber se nosso poder e vontade era pouco ou se o mundo é mesmo cruel. Nesse momento entro em um devaneio sobre nosso imenso passado, vejo que estou com os olhos pregados nela, e ela em mim, e ela coça o queixo, enquanto eu volto as minhas memórias. Como não lembrar de tudo, se fui eu quem lhe deu o apelido que ela carrega até hoje?

Quando travamos amizade, jovens e irresponsáveis, andávamos de bar em bar, bebendo e dizendo: “Baby diz que morreria para te conhecer se você pagasse uma bebida para nós.” Minha Baby era tímida, era boba, e chorava muito no começo, principalmente quando alguém a ofendia, mas era muito bonita. Percebi que quanto menos chorava, menos me olhava nos olhos e cada vez ficava mais distante.

Quando a casa caiu e seu pai descobriu o que fazíamos nas madrugadas de São Paulo,e o nome que ela gostava de ser chamada, se ouviram gritos dizendo “Oswaldo! Oswaldo! Seu nome é Oswaldo!” Eu estava lá, mas era possível ouvir a briga no quarteirão inteiro, além dos barulhos de tapa, e, eu, sem entender o porque daquilo tudo, apenas pensava em proteger aquilo que tanto amava: minha Baby. Porque o pai dela não podia virar as costas e ir embora? Nos deixar em paz? Nem pedia a aceitação, eu só não queria a violência.

Lembro também que Baby começou a ficar obscura, queria ver o mundo de uma forma que eu discordava, quis vender o que para mim não devia ser vendido e me culpar pelo destino que tomava. Quando são distribuídas culpas, as brigas são sempre inevitáveis. A minha Baby se foi. E nós nunca teremos Paris, pois nunca fomos até lá. E também nunca voltaremos a conversar, pois não podemos ser humildes ou iguais na dor, prometemos isso a nós mesmos. Eu não entendo a dor dela, eu só consigo imaginar, talvez, se eu estivesse no lugar dela, teria feito igual, ou pior.

Quando retorno dos meus devaneios, Baby já tirou os brincos e noto que está muito branca, e, me parece esquisita sem seus cabelos e brincos. Chegando em casa, irá tirar os cílios e maquiagem, vestido e enchimentos, por último as meias e o salto, mas eu sei que nem nua ela virá outra coisa sem ser Baby. Irá virar uma dose de cachaça para ajudar a dormir, e esquecer o que tiver que esquecer daquele dia.

Tenho que andar mais meia hora olhando de viés para ela, pois, embora ambos saibamos de nossa presença nenhum a quer anunciar, e o silêncio que encaramos por toda nossa vida, acerca dos assuntos que a permearam, permanece.

Me pergunto se Baby ainda diz que está louca para conhecer alguém, como naqueles velhos tempos ou se tem vontade fazer o sangue de alguém subir. Ou se já encontrou alguém com pele tão branca e olhos tão negros como os dela e que os ame, como eu amei.

Mas quando, enfim, olhos em seus olhos para perguntar, aquela voz, que nunca irá existir em outro lugar sem ser no metro, anuncia a parada dela, ela sai, e a única coisa que Baby diz é adeus ao passar por mim.

Teus olhos e meu coração.

 

Ela tinha olhos cor de mel, impossível de esquecer. A primeira vez que a vi, foi na praia. Ela estava parada, olhando para o mar, seu vestido era azul celeste e feito de um tecido muito leve, quase transparente. Era um final de tarde e ventava bastante naquele dia. Eu gostava de sentar na areia e ficar desenhando, e foi nesse dia que a notei perto de mim. Ela também me viu. Em um momento, virou-se para trás e me olhou com aqueles olhos cor de mel brilhantes e sorriu. Pensei que ela iria me cumprimentar, mas simplesmente foi embora, caminhando pela praia.

Dias depois, descobri que ela morava no mesmo prédio em que eu estava hospedado, na verdade, era minha vizinha. Tantas coincidências estavam acontecendo, e sempre acreditei que nada era por acaso. Era um sinal de que algo iria acontecer entre nós, pelo menos eu tinha certeza disso, mas estava errado, pelo menos em parte.

Na quarta vez que a vi parada, ela estava na parte de baixo do prédio, fumando. Já a tinha visto entrando no apartamento com sacolas de supermercado, na praia novamente parada e saindo do prédio. A última vez foi enquanto eu estava na sacada do meu apartamento. Nenhuma dessas vezes consegui me aproximar dela, pois tudo acontecia muito rapidamente. Ela parecia ser uma daquelas pessoas ocupadas que tinham dois empregos e cuidavam de casa, parecia ser independente e resolvida. No entanto, em outras ocasiões, especialmente quando a via na praia, parecia à beira das lágrimas e triste. Era uma tristeza profunda, não temporária, mas aquela que vinha de dentro de seus olhos. Era a tristeza das pessoas que foram decepcionadas pela vida muitas vezes, dos depressivos, das pessoas que nunca foram amadas, das mães que perderam seus filhos. Era uma tristeza palpável, profunda o suficiente para tocar.

Eu me interessei por ela por causa de todas essas questões, porque ela parecia indecifrável e, ao mesmo tempo, fácil de entender. Então, decidi falar com ela. Conversamos, ela era simpática e tinha um sorriso lindo. Eu contei que estava passando alguns meses no apartamento que, na verdade, pertencia ao meu irmão, e ela me disse que estava morando no prédio há apenas alguns meses. Tinha se mudado recentemente com o marido. Foi um choque, pois nunca a tinha visto com ninguém, nem ouvido vozes em seu apartamento. Ela não parecia casada. Ela percebeu minha surpresa e explicou:

-Ele trabalha muito, então nos vemos pouco.

 Ela gostava dessa independência e não era do tipo grudento ou romântico. Estavam juntos há quatorze anos, mas não tinham filhos, pois ela não quis. No final da conversa, ela disse que precisava subir para organizar algumas coisas antes de ir para a academia e se foi. Eu a olhei nos olhos durante toda a conversa, pelo menos tentei, porque em alguns momentos meus olhos se desviavam enquanto ela falava.

Eu fazia questão de conversar com ela sempre que nos encontrávamos, e com o tempo, ela também parecia gostar da minha companhia. Comecei a ir até o apartamento dela à tarde para tomar café e ouvir música. Às vezes, íamos juntos à praia, e eu desenhava enquanto ela observava as ondas, perdida em seus pensamentos. Era uma amizade, embora eu quisesse mais, sabia que estava errado. Em três meses, vi o marido dela apenas uma vez. Em um dia em que estava na frente do apartamento dela, ele chegou e nos cumprimentou, explicando que eu era o novo vizinho, e então entrou. Eu vi a tristeza em seus olhos naquele momento, foi rápido, mas intenso. Eu teria abraçado, beijado e feito promessas de amor ali mesmo, mas não era possível. Aflorou em mim um desejo ardente, principalmente agora que sabia da infelicidade dela em um casamento que aparentemente estava gasto e carente de amor. Parecia que não era errado desejar, beijar. O marido dela não era mais do que um acessório em sua casa, como uma mesa ou um vaso. Algo sem importância para mim e, talvez, para ela.

Eu comecei a deixar transparecer meu desejo, e ela permitia, até certo ponto. Eu tinha que ser sutil. Infelizmente, meu tempo ali estava chegando ao fim, e pensei em tentar estender meu contrato de trabalho, mas isso prejudicaria meus futuros empregos na cidade onde eu oficialmente morava. Chegou o dia em que eu precisava contar a ela sobre minha partida. Iria embora em uma semana e precisava avisar. Estávamos tomando café na casa dela, e o marido estava no escritório trabalhando em um projeto. Eu disse que iria embora, mas antes, queria dizer algumas coisas. Ela pegou minha mão e colocou-a sobre seu peito, pedindo para que eu não dissesse nada, fazendo um sinal de silêncio com a mão sobre os lábios. Ela me disse:

-Meu coração bate forte perto de você.

            Ficamos em silêncio, nos olhando, e lágrimas escorreram de seus olhos. Ela se levantou em silêncio, enxugou as lágrimas e me abraçou. Foi tudo o que tive, um abraço forte. Ela me pediu para me despedir antes de viajar.

Ainda a encontrei mais uma vez, e fomos à praia. No dia em que parti, bati na porta de seu apartamento, mas ninguém atendeu. Pelo horário, ela poderia realmente não estar em casa, mas também poderia estar lá e não querer me ver. Ela já tinha dito meses atrás que não era boa com despedidas. Conversamos algumas vezes por mensagem, mas ela era péssima em responder.

Ao chegar à minha cidade, pintei um quadro com os olhos dela, o quadro mais caro que já fiz. Não quero vendê-lo, é tudo o que tenho. Embora não sejam os olhos reais dela, são apenas minha impressão, o que eu vi, o que eu lembro. Imagino se ela ainda está casada e vai à praia para olhar as ondas, perdida em seus pensamentos. Se em sua imaginação, ela tem alguém ao seu lado que existe de verdade, não apenas um fantasma, uma sombra. Começo a pensar em seus olhos e como, apesar de serem lindos, eles eram cegos. Fico triste por mim, por ela, pelos olhos e por tudo o que nunca aconteceu, exceto em minha imaginação.

 

Ruínas

 

Ela fechou os olhos, enquanto observava tudo acontecer. Não sabia o que dizer ou para onde ir. Parecia, naquele momento, que ela estava prestes a derreter, assim como tudo ao seu redor; tudo estava desmoronando lentamente.

A última frase dita ainda ecoava em sua boca: "Espere, ninguém te ama como eu te amo!" E o som da porta batendo também ecoava em seus ouvidos, uma batida seca e sem emoção, assim como o relacionamento deles: sem graça, assim como sua própria necessidade por aquele relacionamento.

Tudo estava amargo, tudo estava ruim, tudo desmoronava. Ela o procurou (tudo desmoronava), mas não o encontrou em casa (tudo desmoronava). Ela procurou todas as pessoas que conhecia, mas ninguém sabia (tudo desmoronando), ele finalmente a havia abandonado (tudo desmoronou). Meses depois, sua mente ainda estava turbulenta; ela se sentia inútil, e tudo parecia inútil para ela.

Finalmente, após vários dias de espera, uma noite, ela ouviu alguém bater à porta e correu para atender: era ele! Ela queria abraçá-lo, beijá-lo, tocá-lo, mas não podia. Satisfez-se apenas em olhá-lo com olhos vazios e cheios de lágrimas. Ele permaneceu parado na soleira da porta, esperando. Ela disse: "Minha casa é sua casa, podem entrar."

Ele entrou timidamente e sentou-se. Disse: "Não deu certo, você sabe?"

Ela não sabia, mas não disse nada, apenas esperou. Ele colocou as mãos no rosto e continuou: "É estranho."

Ela respondeu automaticamente: "Não vá." Sentiu-se culpada depois e abaixou a cabeça. Um silêncio se instalou. Ele riu, foi ao quarto, pegou uma blusa e estava saindo.

"Espere", ela gritou. Ele voltou e ficou perto dela. Se olharam, ele foi até a mesa e deixou a blusa lá. Voltou perto dela, a abraçou e fez o que sabia fazer melhor: pegou em sua mão e a guiou, como se nada tivesse acontecido. Até aparecer a próxima garota, a próxima briga, a próxima oportunidade.

Ela sabia que um dia ele desapareceria e não voltaria, mas aceitava o risco de amar nas ruínas de um relacionamento, tornando-se aos poucos uma ruína também.

 

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

A sinfonia imperfeita.

 Não me lembro quando conheci alguém tão divertida, bonita e inteligente. Devem ter passado uns cinco anos ou mais desde a última vez que me deparei com alguém assim. Sim, naquele momento, eu estava encantado por ela. E, particularmente feliz pelo fato de que, aparentemente, um romance dela tinha dado errado há um mês atrás. Fiz uma anotação mental para nunca contar a ela que fiquei feliz com a ruína amorosa dela.

Foi a primeira vez em anos que passei horas com alguém sem perceber o tempo passar. E eu queria passar mais horas com ela. E poderia passar mais horas com ela, o que era incrível também. Ela parecia extremamente disponível para estar comigo. Ela queria estar comigo, e eu nem precisei fazer nenhum esforço. Da última vez que saí com alguém o tempo todo, tive que me esforçar. Esforçava-me para agradar, depois para não parecer muito "emocionado", e até mesmo para fazer coisas que não estava afim, mas ela estava. Era um esforço constante, até que me cansei e parei. E o relacionamento também acabou. E agora, eu estava aqui, diante dessa pessoa incrível. Parecia um presente de Deus.

Passeamos e conversamos, e no final da noite, acabamos sentados em frente à casa dela. Era verão, mas a noite estava amena. Ela disse que precisava entrar. Eu também precisava ir embora, já era alta madrugada. Percebi que ainda não a tinha beijado naquele instante. Olhei para ela e fiquei paralisado por alguns instantes; ela tinha um sorriso lindo. Mas a beijei. E o beijo dela foi fantástico. Foi um prazer indescritível, uma orgia de prazer. Havia entrega e desejo. Naquele beijo, senti o desejo dela de ficar comigo. Foi um dos melhores beijos da minha vida. Um encaixe perfeito.

Mas tínhamos que nos despedir. Houve mais beijos de despedida, abraços, e o fim. Fui embora. Viajava no dia seguinte às dez horas da manhã para São Paulo, onde eu morava. Conhecer aquela menina foi um presente grego, a perfeição, a mais pura perfeição que eu não poderia ter. Malditas férias em Maceió. Longe, muito longe de mim. E impossível de ficar perto, ambos temos trabalhos, família, amigos...

Definitivamente, São Paulo estava mais cinza quando cheguei. Por alguns minutos, pensei em largar tudo e simplesmente voltar para Maceió. Mas eu tinha acabado de ganhar uma promoção no trabalho, e todos sabemos que não é fácil arranjar emprego no Brasil de 2022. Os colegas de trabalho perguntaram sobre a viagem: foi boa? Descansou? Se divertiu? Sim, foi ótima, e voltei com as energias renovadas. Pensei nela o dia todo, mas isso não comentei com ninguém. Minha irmã almoçou comigo e também perguntou sobre a viagem. Ainda assim, mantive o silêncio.

Não direi a ninguém, pois não há como expressar o que sinto. É uma loucura imaginar que me apaixonei assim em tão pouco tempo, apenas quinze dias. Isso vai passar. Ficaremos bem. E essa paixão será uma lembrança que trouxe comigo da viagem, guardada para sempre onde ninguém pode alcançar ou quebrar. Eu ganhei uma promoção, ela ganhou uma bolsa de estudos, e infelizmente, neste mundo, não podemos ganhar tudo.

Perdemos um romance.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A bela da noite

 

Era o quinto ou sexto cigarro que aquela menina fumava? Fiz as contas rapidamente: eu tinha parado de contar no terceiro, isso já fazia algum tempo, então devia ser o sexto ou sétimo na verdade. Mas era fato que àquela altura ela estava em outro nível de consciência: algumas pessoas diriam bêbada. E era um estado de espírito bem diferente do meu.

Porém, era hipnotizante o jeito como ela se mexia, me fazia pensar em coisas que não podem ser ditas aqui pois ferem a moral e os bons costumes. Eu fiquei olhando para ela como se não pudesse desviar o olhar, e de fato, não podia mesmo. O lugar que estávamos era uma dessas casas noturnas pequenas e fechadas que, além de extremamente quentes, parecem que foram criadas com o propósito de fazer as pessoas brincarem de “sardinha” em um nível jamais imaginado. Não gosto desses lugares, e, na verdade tinha ido só por que precisava sair um pouco de casa. Para o meu azar,  meus amigos gostavam daquela loucura, com DJs que tocam músicas hipsters que eu não ouço, luzes que piscam o tempo todo, pessoas se esbarando e dançando de maneira escandalosa, chão ficando grudento por causa da bebida derramada...Eu estava pensando: “o que vim fazer aqui nesse inferno?”.

No momento em que eu já questionava seriamente a minha participação com meus amigos naquela noite, resolvi ir lá fora fumar, e refletir sobre o que disse acima, e essa guria chegou, parou bem na minha frente, com um grupo de amigos barulhentos, e, nem por um minuto parou de dançar e mexer, quando ela resolveu entrar naquele inferno, fui atrás dela, não fazia ideia do que estava fazendo, mas considerei que minhas possibilidades de diversão eram poucas, olhar ela tinha me divertido, portanto segui- la era a melhor coisa que eu tinha para fazer naquele momento. E fiquei nesse caminho a noite toda, ela fumava eu saia e fumava, ela entrava, eu entrava e ficava vendo-a dançar.

Seja como for, ela nem olhou para minha fuça. E eu, talvez por esse fato, resolvi olhar com mais obstinação para garota, ela estava completamente enlouquecida dançando uma música que falava algo como I want you all the time” (ou será que era “I want you in my time”?), eu a queria, do mesmo jeito que a música estava tão insistentemente cantando, e ela dançava de uma maneira que não devia ser permitida por lei, tenho quase certeza que ela podia ser presa por atentado ao pudor. Fiquei esperando a hora que ela ia tirar a camiseta que já estava grudada de suor (ou seria bebida derramada?) no corpo dela. Ela não tirou, meus sonhos tem a tendência de não se tornarem realidade, mas nem por isso foi decepcionante a vista.

Acabou a sessão do DJ, ela apenas sussurrou algo no ouvido de uma amiga, mandou um beijo pro DJ e saiu para fumar de novo. Será que eles tinham alguma coisa ou eram só amigos? Infelizmente para descobrir isso eu teria que conversar com ela, e socializar não era meu forte. Quais as chances dela vir me pedir um cigarro? Olhei para a horda de amigos dela e vi que ela definitivamente não precisava de mim para conseguir cigarros. Que pena.

Sem coragem para começar a falar com ela eu só podia imaginar na minha cabeça como seria um show particular com ela dançando só para mim. Aqueles cabelos dela eram magníficos balançando, seu sorriso também, não era o corpo que era tão perfeito, apesar de ser bem bonito também, era a energia e maneira como ela dançava. Existiam ali várias meninas mais bonitas, mas elas não tinham essa energia que ela tinha. Elas não tinham essa alegria impenetrável, esse desejo visível de viver e de estar viva.

Mas ela continuava, sem olhar para mim. Me senti mais insignificante que um poste sem luz em uma noite escura.

Decididamente ela estava no oitavo cigarro, e eu no sexto drink, que consistia em vodka pura com um pouco de limão, quando ela entrou, e dessa vez, eu fiquei lá fora, conversando com uns amigos, pensando em como aquela menina estava me matando. Cada centímetro do meu corpo pedindo para chegar perto dela. Eu nem lembro sobre o que meus amigos estavam falando, mas lembro de ouvir uma voz bem distante, insinuando que talvez eu estivesse bêbado e com o olhar perdido.

De repente, ela passou por nós com a bolsa e comanda em mãos. Era agora, ela iria embora, podia conversar com ela e talvez fazer algo que saísse da minha imaginação. Mas tinha que ser naquele momento.

Ela passou por mim olhou na direção que eu estava, nossos olhares se encontraram (é agora ou nunca), respirei fundo (ela estava esperando para poder entregar a comanda e sair), alguém a chamou mão (chamava Elena, seria com E ou H?) e ela olhou, mandou um beijo abanando a mão. Paralisei por uns minutos, então, andei em direção a ela na hora que ela entregava a comanda e saia do lugar, rápida e sutil.

Na próxima noite, talvez, entre o primeiro cigarro e o oitavo, ela olhe para mim e eu consiga ir até onde ela está e, quem sabe, consiga não me queimar com toda a energia que ela possui. Ademais, eu fiquei com uma loirinha aquele dia, muito bonita e simpática, que me deu seu telefone e disse que tinha amado me conhecer.

domingo, 27 de agosto de 2023

Lista.

 -Faz uma lista de coisas novas para eu ouvir?

Esse pedido, todo e inteiramente eriçava minha espinha. Talvez não fosse o pedido.

Talvez, fosse a moça queimada de sol na minha frente, de lindas curvas e olhos cor de mel, que fez minha espinha eriçar.

Talvez fosse o verão. Não era exatamente verão, era aquela época que você sente o verão vindo, o cheiro, as cores e o tempo, tudo muda, tudo começa a esquentar e as coisas parecem mais leves, as pessoas parecem mais bonitas e os pedidos, como esse, se tornam mais indecentes.

Pelo menos na minha cabeça.

Eu imaginei diversas situações onde a mesma pessoa me fazia o mesmo pedido ou um semelhante. E em todas elas não conseguia imaginar nada de bom que viesse depois da minha resposta.

E claro, nós temos o cenário real, o que realmente aconteceu. E, se você leu até aqui, deve imaginar que eu respondi sim, e você, caro leitor, está certo. Não podia negar uma chance dada assim de mão beijada pelo universo para minha cabeça rodar e sair do lugar. Ela sorria tão efusivamente, e, intimamente eu me perguntava :quem sou eu para dizer a ela coisas novas para ouvir?

Entenda: não sou músico, sou escritor. Trabalho com revisão de texto e dissertação. Mas, por algum motivo minha opinião musical era importante para ela. Deve ser o Bob Dylan. Quase sempre é por causa dele.

Ou talvez seja só...Alguma outra coisa inominável nesse texto.

Eu, dei a lista, tal qual pedido. Tiveram piadas, risos e conversas. A mão dela roçando no meu braço, minha espinha arrepiada, o perfume dele, doce, o calor...

Eu sabia, eu soube no momento que ela fez a pergunta que aquele momento não se repetiria, nem com ela nem com ninguém. Eu não a veria mais. Fiquei triste. Gostaria que ela tivesse me feito a pergunta por alguma rede social. Lá a pergunta ficaria para sempre. Se fosse em uma publicação ou em uma mensagem particular. As vezes na publicação causaria inveja e quando muito tempo depois, eu estivesse namorando ou saindo com alguém, e a pessoa pergunta-se “Quem é essa menina?” eu mentiria. Diria que nem lembrava mais, uma qualquer. E a mentira renovaria aquele comentário e só eu saberia que foi importante.

Pessoalmente o único registro é a memória, e ela mente. Eu diria que a moça usava vestido azul, mas talvez ela estivesse de macacão rosa. Mas era bonita e bronzeada, isso é verdade. E queria ouvir o que eu sugerisse, não seria uma forma de intimidade?

Ela foi embora com a lista e todas as minhas fantasias relacionadas a ela. Numa tarde de sol, longe da praia e perto do cinema. E eu nunca mais a vi.

terça-feira, 4 de julho de 2023

One for the money, 2 for the show...

 

Você ainda é o cara mais legal da sala. Como alguns dizem: “Cool”.

Ainda é a sensação do momento, o eixo da roda, um James Dean com causa, o cara mais esperto do lugar, o meu sonho de consumo. Você ainda é ...

Eu ainda digo que não amo mais você, e, sei bem como isso é perda de tempo. Mas então, te vejo ali, parado. Faz tanto tempo que você já se foi da minha vida, e eu ainda acho você a melhor pessoa daquele lugar. E não importa se existem cinquenta pessoas ou apenas duas, você ganha de todas. Tão perfeito, tão maravilhoso. E eu jamais vou entender por quê, mesmo eu achando você tão perfeito, eu saí com um coração tão estraçalhado dessa relação. Por que não demos certo? Por que eu não fui feliz?

Hoje em dia vejo por que tinha tanta dificuldade em terminar com você, nunca enxerguei os defeitos que as pessoas diziam que você tinha, nunca consegui ver que nós não daríamos certo em realidade nenhuma. Seria isso o que chamam de cegueira? Será que é eterna?

Não é nenhuma ilusão, o sol está batendo exatamente onde você está sentado, refletindo em você enquanto você fala. E você tem aquele jeito de falar todo especial, como se quisesse convencer alguém o tempo todo, mas sem demonstrar isso diretamente, e o sorriso que você dá para seus interlocutores é um dos sorrisos mais lindos que eu já vi. Parece que você está vendendo uma causa, uma casa ou um corpo. Você. Está vendendo você.

Você é bom falando, é bom escrevendo, é bom em tudo que conheço. Seu beijo...Só de lembrar me dá arrepios... É o melhor beijo que já provei e você (atencioso) era tão lindo.

(Mas se tudo em você é perfeito, por quê não demos certo?)

Quero lembrar seus defeitos, os momentos ruins e as brigas. Mas não consigo, não sei o que é ficar com raiva de você por muito tempo.

Agora você vai movimentar o braço, despretensiosamente, mas de maneira charmosa e elegante, parece calculado. Parece uma coreografia. Nem um milímetro fora do lugar. Mas é um solo. Não é uma dança de salão.

Como é ter toda essa atenção? Como é saber que você ganhou o jogo sem precisar jogar? Como é ser o homem de um milhão de dólares?

Você ainda é o cara mais legal da sala, uma pena, realmente uma pena, você não ter sido o cara mais legal da sala para mim.

 

terça-feira, 30 de maio de 2023

Like a stone...

 Lembranças são coisas engraçadas. Essas memórias involuntárias que vem quando você menos espera e estacionam em sua mente. Sem pedir licença.

E, algumas vezes são lembranças gostosas, e, de tão boas que são, ficamos querendo revive-las. Outras, são catastróficas, e nos fazem mal, queremos esquece-las.

Minha vida, muito bem vivida, é repleta de memórias de ambos os tipos. Minha adolescência é recheada de histórias, algumas tão estranhas que parecem invenção da mente de uma pessoa louca. Outras nem tanto.

Mas, o engraçado, é que muitas das coisas que eu lembro, que me marcaram por anos, e, na verdade, me marcam até hoje são memórias muito simples, muito bobas e triviais. Coisas do dia-a-dia e que não tiveram importância nenhuma na época, ou que não deveriam ter, mas tiveram para mim. Uma frase de alguém no ponto de ônibus, eu escrevendo com giz na calçada de uma amiga, eu e meus amigos sentados fazendo absolutamente nada no meio de janeiro com sua onda insuportável de calor, o dia que bebi coca cola na pista de skate...

Vamos a uma delas.

Parece que foi em outra vida, mas foi nessa vida mesmo há dezesseis anos, eu estudava na cidade do lado da minha. Muitas vezes eu precisava ficar na escola a tarde, pois tinha algumas aulas na parte da tarde e acabava voltando no ônibus que saia do centro da cidade. Tinha um amigo, que eu admirava e gostava, cegamente. Claro que na época eu não sabia que estava cega, essas coisas só são percebidas muito tempo depois...

Eu também não sabia que ele queria algo mais que a minha amizade. Hoje em dia, penso, que uma parte de mim desconfiava, mas simplesmente não queria enxergar. Ou que realmente eu tinha uma pureza que hoje em dia não existe mais e eu já nem me lembro como é.  

Em um desses dias que eu precisava ficar nessa cidade a tarde, eu e esse amigo combinamos de nos encontrar lá e voltarmos juntos para a nossa cidade. Não lembro de nada que conversamos nesse dia, eu não lembro o que fizemos, onde fomos, e nem ao menos lembro o motivo de termos combinado esse encontro. Mas me lembro vividamente de uma coisa, que para qualquer observador externo irá parecer a mais trivial de todas as lembranças que eu podia ter.

Quando entramos no ônibus para retornar à nossa cidade eu disse a ele:

- Eu gosto de sentar na janela.

Ele disse:

-Eu também.

Foi um minuto de tensão, eu passava mal se não sentava na janela, por outro lado, não estava acostumada a pedir o que queria para outras pessoas. Mas ali eu senti que poderia pedir, ele era meu amigo.

-Deixa eu sentar na janela?

-Bom- ele respondeu- Pode sentar na janela mas só porque é você. Eu não deixaria ninguém mais sentar na janela.

Eu fui na janela. Essa é a lembrança.

Hoje em dia quando eu lembro disso fico feliz e fico triste. Gostaria de ser sua amiga ainda. Mas eu era toda errada, e ele era pior ainda. Péssima junção. Eu queria reviver esse dia, mas também consigo entender porque a namorada dele tinha ciúmes de mim: ele nunca a deixou sentar na janela. Mas se namorasse com ele, acho que também não sentaria. Eu era sua amiga, era... diferente.

Nunca houve romance, nunca promessas de amor ou desejos carnais que precisavam ser realizados. Houveram algumas confusões de adolescentes que não sabiam o que queriam. E houve a briga. E o fim.

Não importa nada disso hoje em dia, nem me lembro direito. Me importa que um dia, você me deixou sentar na janela e naquele momento eu estava feliz. Obrigada.

domingo, 23 de abril de 2023

Kaíros, Cronos e malditas flechas de bronze.

 Existirá um momento em que poderei olhar os abetos da vizinha e achar graça e glória nas cores, olharei os pássaros e cantarei músicas de amor, pensando na pessoa que amo, com leveza e sem restrição. Eu irei sorrir aquele sorriso que apenas os apaixonados e loucos conseguem esboçar, andarei em nuvens, escreverei poemas e esquecerei que sofri um dia.

Mas esse momento não é agora.

Terei o momento de alegria, de júbilo em ter encontrado aquele cujo os olhos brilham ao me ver, e eu olho de igual, sem medo, sem desgaste, sem imaginar quantos horrores poderão vir a nos separar um dia.

Mas...não hoje.

Eu te vi, eu me apaixonei, eu me perdi. E foram dias de delírio, de loucuras e até de irresponsabilidades constantes em relação aos outros e até a mim mesma. Me permiti viver algo e foi fantástico. Apesar disso, eu me sentia dentro de um carro, cujo o freio quebrado anunciava o desastre iminente, fazendo com que eu pudesse tomar apenas duas decisões: pular do carro ou permanecer nele até que ele batesse em algum muro. Eu fiquei com o muro e me orgulho muito disso.

Fiquei, pois gostava de sentir sua pele na minha, gostava de conversar com você, gostava dos seus olhos e de como você ficava bonito quando falava sobre algo que gostava, amava como você me tocava e de como me sentia em chamas quando te via sorrir. Fiquei, pois quis me atrever a ficar uma vez na vida, já que em todas eu sempre corro. Fiquei e ficaria de novo! Só para poder ouvir você falar que gostaria de me ver de novo no dia seguinte ou que eu estava linda mesmo descabelada. É, eu não consigo me arrepender, mesmo depois do carro ter se arrebentado no muro de forma tão violenta que nenhum seguro cobriria os danos. Foi-se o carro, ficam as lesões.

Você foi meu escolhido, mas as leis caóticas que regem nosso universo e se fazem presentes todos os dias gostam de ser irônicas. Você jamais poderia me escolher. Você nem ao menos teve a chance de pensar nisso, foi tudo muito rápido, e, seu coração já não te pertencia. Pertencia a outra pessoa que você não escolheu gostar, mas gostava, mesmo assim. E, com o tempo, seu coração vai esquecer essa pessoa, e você irá conseguir se entregar de novo e gostar de alguém.

Mas esse tempo não é agora.

Mas vai chegar a hora, e, nesse momento, minha hora em sua vida terá passado. Nós iremos nos ver, conversar e até talvez rir, lembrando de tudo que aconteceu, eu direi sem dor que me apaixonei de forma repentina e não deu certo. Vamos atribuir a culpa aos signos, a bebida, a situações, mas nunca a culpa terá sido nossa. Não podemos ter culpa de nada, não tivemos. Foram os astros, foi o caos, foi a flecha de bronze do cupido...

Um dia teremos isso, não sei quando, só sei que não será nesse momento. Irei aguardar pacientemente por isso, e enquanto não chega, contarei as horas, irei escrever, ler algum livro, falar de política. Existe um momento que é preciso superar e seguir em frente.

Daí a Chronos o que é de Chronos e ao cupido suas flechas novamente. Tudo deve voltar ao seu lugar em algum momento.

E esse momento é agora.